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Nossa casa garante, ou deveria garantir, a proteção de seus moradores em condições mínimas de saúde e segurança.
Por Tiago Holzmann da Silva, presidente do CAU/RS
O isolamento imposto pela pandemia do novo coronavírus (COVID-19) obriga a nos protegermos em nossas casas. Nunca antes esse espaço foi tão importante. Se já era nosso abrigo familiar, agora transforma-se no lugar de defesa sanitária de toda a sociedade.
Nossa casa garante, ou deveria garantir, a proteção de seus moradores em condições mínimas de saúde e segurança. Entretanto, grande parte da população brasileira mora em ambientes inseguros e doentes. Casas que não oferecem os espaços mínimos para atividades básicas; instáveis e mal construídas, sem nenhum conforto. Casas sem banheiros, sem destino adequado para o esgoto; muito frias ou muito quentes, úmidas, mal ventiladas e iluminadas; com muitas pessoas morando juntas e, frequentemente, convivendo com dejetos e animais.
A casa está doente quando não garante a seus moradores as condições mínimas de segurança e saúde. Uma casa doente deixa seus moradores doentes e pode colocar em risco toda a comunidade. Diversas enfermidades estão diretamente associadas às condições de moradia. A tuberculose se propaga em ambientes mal iluminados. A diarreia mata, em média, 2.500 crianças por ano no Brasil, pela falta de higiene básica, como lavar as mãos e os alimentos. Alergias e muitas doenças respiratórias estão associadas a ambientes úmidos e mal ventilados. A leptospirose contamina pessoas que convivem com urina e fezes de ratos. Todas essas enfermidades são curáveis, apesar de matarem milhares de brasileiros por ano, além de consumirem enormes recursos do Sistema de Saúde.
Mas o Sistema de Saúde não tem remédio para a casa. O tratamento e os remédios não combatem as causas, e sim apenas as consequências, pois enviam os enfermos de volta à casa que os deixou doente. São os arquitetos e arquitetas que têm os remédios para curar a casa que deixa as pessoas doentes. Banheiro, água potável, fossa e destino adequado para o esgoto, cômodos mais amplos e confortáveis, melhor iluminação e ventilação, acessibilidade, estabilidade da construção e instalações são atribuições profissionais do arquiteto e urbanista.
Neste momento, em que as medidas de contenção da pandemia colocam a nossa casa como centro da estratégia, como ficam os nossos vizinhos que moram sem condições mínimas de saúde e segurança, nas nossas vilas e favelas, e que também precisam adotar as medidas preventivas oficiais, como lavar as mãos e se isolar em casa? Cerca de 7 milhões de moradias em todo país apresentam carência de infraestrutura[1], ou seja, não dispõe de serviços básicos como abastecimento de água, destino adequado do esgoto e do lixo. As necessidades habitacionais enfrentadas por grande parcela da população são históricas, e vão além da moradia: presumem a construção de cidades sustentáveis, a melhoria de infraestrutura urbana dos bairros existentes e o enfrentamento de aspectos legais para a garantia da posse da terra e da moradia.
Contudo, desde 2008, uma lei federal permite que seja criado e implantado um serviço público para melhorar a moradia das famílias com renda de até três salários mínimos. Essa lei visa atender o direito à moradia, garantido a todos os brasileiros pelo artigo 6º da Constituição Federal, assim como saúde, educação, segurança e outros. Para atender ao direito à saúde, temos o Sistema Único de Saúde (SUS), universal e gratuito para toda a população, e que faz do Brasil uma referência internacional (a atual crise demonstra sua relevância e importância). Na área da educação, temos desde creches até universidades públicas. Na área da segurança e da justiça, as polícias, o judiciário, o Ministério público e as Defensorias Públicas, responsáveis por garantir às pessoas necessitadas o acesso à justiça de forma gratuita.
Entretanto, para garantir o direito à moradia digna ainda não temos um sistema público e gratuito para assegurar às famílias de baixa renda a assistência técnica de profissionais capacitados. A Lei 11.888/2008 tem exatamente esse objetivo: tal e como no SUS, a universalização do acesso aos serviços de arquitetura e urbanismo, visando a oferta de serviços técnicos de forma remunerada, custeados por recursos públicos, necessários para o projeto e a construção da habitação, a regularização fundiária e melhorias urbanas. Essa lei é resultado da luta liderada pelo arquiteto gaúcho Clovis Ilgenfritz da Silva, iniciada na década de 1970, e que conseguiu aprová-la quando deputado, com a colaboração do também deputado e arquiteto Zezéu Ribeiro e das entidades profissionais.
Conhecida como Lei da ATHIS (Assistência Técnica para a Habitação de Interesse Social), é reconhecida como a grande oportunidade de qualificarmos em larga escala a habitação no Brasil, atendendo as famílias onde elas moram e têm relações sociais, resolvendo seus problemas específicos e qualificando suas casas, comunidades e cidades. No Rio Grande do Sul, a assistência técnica poderia atender metade das famílias (48%, 4,6 milhões de gaúchos)[2] possibilitando o atendimento direto das famílias por um profissional arquiteto e urbanista.
O Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU) órgão de regulação e fiscalização da profissão, destina, desde 2015, 2% de seu recurso orçamentário para a promoção e implantação da ATHIS. Com esse recurso, o CAU/RS apoia e patrocina diversas ações de entidades, faculdades, ONGs e constituiu, em 2019, o Gabinete de ATHIS, que tem o objetivo de diagnosticar, divulgar e fomentar diretamente a ATHIS, notadamente para ajudar os municípios a implantar essa política. Nesse sentido, a principal ação do Gabinete da ATHIS foi a criação do Programa ATHIS Casa Saudável com projetos pioneiros sendo iniciados por algumas prefeituras do estado do Rio Grande do Sul. O programa prevê exatamente a integração de um profissional arquiteto e urbanista junto às equipes que trabalham com a Estratégia Saúde da Família (ESF) nos municípios gaúchos. Com essa iniciativa, as equipes de saúde passarão a contar com o profissional que faltava – o arquiteto e urbanista – aquele que tem remédio para a casa e que, junto com os demais profissionais que têm remédios para as pessoas, ajudará a melhorar a saúde, a segurança e a qualidade de vida da família atendida.
A ATHIS é uma política pública que, além de assegurar moradia saudável e segura à população de baixa renda, também diminui os gastos com saúde pública, melhora a qualidade de vida dos bairros e comunidades e ainda movimenta a economia e o comércio local, gerando emprego e renda na área da construção civil. Veja mais sobre ATHIS no site do CAU/RS: caurs.gov.br/athis
Nessa situação de pandemia mundial que vivemos, ampliada em muito no Brasil pelas condições dramáticas de desigualdade e pobreza, a ATHIS poderá ser uma política efetiva de recuperação do estado atual de precariedade habitacional e falta de condições sanitárias mínimas. Poderíamos ter avançado antes, se houvesse a implantação da lei desde 2008, quando foi aprovada. Não faltou empenho das entidades profissionais dos arquitetos e arquitetas nesse período. Logo, passado o tsunami do vírus, pelo menos já temos uma proposta concreta e factível, complementar à política de saúde e amparada pela legislação, para reconstruir a nossa sociedade salvando vidas no dia a dia, prevenindo crises futuras e melhorando a qualidade de vida dos que mais necessitam.
Referências:
[1] Fundação João Pinheiro. Déficit habitacional no Brasil, 2018.
[2] IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, 2015
3 respostas
Parabéns ao CAU por esta importantíssima abordagem.
Ótimo artigo Tiago. Se investíssemos mais em políticas sanitárias para as cidades, talvez não precisássemos tanto investimento em saúde.
Parabéns ao CAU, torcendo que este tipo de iniciativa mude o perfil da habitação de interesse social no Brasil.