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O presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU/RS), Tiago Holzmann da Silva, destacou a trajetória e a relevância do arquiteto e urbanista Francis Kéré, vencedor do Prêmio Pritzker em 2022, em artigo recentemente publicado na Revista Parêntese, do Grupo Matinal Jornalismo.
Leia abaixo o conteúdo na íntegra:
O melhor dos dois mundos
O Prêmio Pritzker de Arquitetura pode ser descrito como o “Nobel da Arquitetura” e é reconhecido como o mais importante em nossa área, pois, nesses mais de 40 anos, conquistou respeito internacional pela seriedade dos trabalhos desenvolvidos e dos profissionais premiados. O Prêmio é promovido anualmente, desde 1979, pela The Hyatt Foundation, fundação com sede em Chicago, mantida pela família Pritzker, que é proprietária dos Hoteis Hyatt, entre outros negócios. Este dado não é desabonador da premiação: ao contrário, o reconhecimento de profissionais fora do eixo e além do chamado “star system” dos grandes escritórios globais é motivo de valorização ainda maior dos premiados recentes.
Diébédo Francis Kéré, ou apenas Francis Kéré, nasceu em 1965 no vilarejo de Gando, na antiga República do Alto Volta, colônia francesa rebatizada, depois da independência, como Burkina Faso, nome que pode ser traduzido como “terra das pessoas íntegras”. Kéré, sem dúvida, é uma delas. Primogênito do chefe de seu vilarejo, foi o primeiro da família a estudar, tendo revelado em entrevistas recentes que a experiência da precariedade daquele ambiente escolar o estimulou, anos mais tarde, a propor seu primeiro projeto, exatamente para a escola primária de Gando, edificação premiada internacionalmente já bem no início de sua carreira. Em 1985 obteve uma bolsa de estudo para estudar carpintaria na Alemanha e, anos depois, outra para fazer o curso de arquitetura na Universidade Técnica de Berlim, cidade na qual tem seu escritório e realiza trabalhos para sua terra natal e outros países da África.
Nos últimos anos o reconhecimento de seu trabalho transbordou essas fronteiras, sendo emblemático o convite para realizar, no Kensington Garden em Londres, o Serpentine Pavilion do ano de 2017, para o qual criou uma “árvore” cuja sombra permite contar histórias como símbolo de união da comunidade.
Kéré foi um dos palestrantes principais do Congresso da União Internacional de Arquitetos (UIA), que deveria ser realizada em 2020 no Rio de Janeiro, mas acabou sendo adiada em um ano e realizada de forma remota em 2021, em função da pandemia. Em sua apresentação, em forma de entrevista, relata que seu único interesse em estudar na Alemanha era adquirir conhecimento em Arquitetura e voltar para servir a sua comunidade.
Em sua cultura, o conhecimento é adquirido com o tempo, com a experiência, e ele precisou conquistar a confiança de seu povo para poder realizar seu primeiro trabalho usando as habilidades da profissão para construir uma escola com materiais e técnicas construtivas locais e ancestrais. Conta que, ao revelar que iria construir com argila, a sua comunidade achou que era uma espécie de “sabotagem” dos alemães para que eles “permanecessem pequenos”, pois estavam esperando um edifício de concreto e vidro.
Entretanto, a escola em Gando foi responsável pelo sucesso inicial de sua carreira, que está intimamente conectada com a demonstração de viabilidade das práticas locais e com a afirmação da importância da confiança e participação da comunidade. Kéré parece nos provar que aquele lugar já continha aquele projeto. E que ele apenas fez desvendar, revelar o que sempre deveria estar ali, tal como Michelangelo, que em suas esculturas dizia libertar do mármore bruto as formas nele aprisionadas.
Ao descrever seus trabalhos ele relata que seus projetos são “resultado da combinação de necessidades básicas, orçamentos limitados, convencimento da comunidade para trabalhar em equipe e uma definição de sustentabilidade de baixa tecnologia baseada em reavaliar e adaptar as técnicas vernaculares para seu próprio benefício”. Tudo isso, destaca, “sem sacrificar a beleza da arquitetura”. Hoje, Kéré reconhece sua condição de privilegiado o que apenas reforça o seu compromisso de servir a sua comunidade.
Nas 43 edições do prêmio, temos dois premiados brasileiros. O nosso patrono Oscar Niemeyer recebeu em 1988 e, em 2006, o premiado foi Paulo Mendes da Rocha. Apenas em 2004 foi premiada a primeira arquiteta, a genial Zaha Hadid, e apenas agora, com Kéré, o primeiro negro e primeiro africano. A visita à página do prêmio e a análise dos trabalhos dos arquitetos premiados é uma excelente aula de arquitetura das últimas décadas.
Fica claro, nos últimos anos, uma tendência do Pritzker a olhar mais para as periferias globais ao premiar mais mulheres, latino-americanos, africanos e negros, sendo uma novidade o reconhecimento de talentos e trajetórias além do “star system” dos grandes arquitetos vinculados à globalização da arquitetura a partir do chamado Primeiro Mundo. Também parece notável a premiação recente de equipes e não apenas de individualidades, pois também reflete bem as novas formas do fazer arquitetura, mais coletivas e mais colaborativas.
Outro destaque relevante nas premiações mais recentes são as trajetórias profissionais de vários arquitetos e arquitetas, mais vinculados a projetos de equipamentos públicos, habitação social e outros programas de caráter mais público e social. Kéré é um destes, e agora faz companhia ao chileno Alejandro Aravena e ao casal francês Anne Lacaton e Jean-Philippe Vassal, ampliando a lista dos premiados que tem seu foco de trabalho no social, na moradia e nos equipamentos públicos.
A trajetória de Kéré também pode ser alinhada com vários outros que, apesar de não haverem recebido o Pritzker, fazem parte desse grupo de arquitetos que tem seu trabalho voltado para resolver os problemas as populações mais pobres. Por exemplo o egípcio Hassan Fathy, infelizmente pouco conhecido, que em seu livro “Construindo com o povo” nos emociona com seus relatos de participação dos moradores nos projetos e do caráter pedagógico e o aprendizado mútuo entre arquiteto e comunidade. Outro é o indiano Charles Correa, com projetos de moradia social de alta qualidade, integrando técnicas locais à arquitetura moderna. Destacável também o nosso Demetre Anastassakis, nascido na Grécia mas radicado no Rio de Janeiro e grande referência em projetos para famílias de baixa renda no Brasil.
A premiação de Kéré pode também ser explicada a partir da análise da comissão julgadora, presidida pelo arquiteto chileno Alejandro Aravena, já premiado pelo Pritzker em 2016, notadamente pela sua atuação em projetos de habitação social naquele país. Com nove integrantes, outros dois arquitetos premiados também fizeram parte do júri, o chinês Wang Shu (2021) e a japonesa Kazuyo Sejima (2010), e temos outras três mulheres, com destaque para a arquiteta Benedetta Tagliabue, italiana radicada em Barcelona, talentosíssima e, certamente, uma forte candidata a futuras edições do prêmio. O júri não é formado exclusivamente por arquitetos, e contou também com o primeiro brasileiro convidado a participar da seleção da premiação, o diplomata e atual embaixador do Brasil na Índia André Aranha Corrêa do Lago, especialista e incentivador da arquitetura. Completam o júri os norte americanos Deborah Berke, arquiteta e professora, Barry Bergdoll, professor e pesquisador, e Stephen Breyer, juiz da Suprema Corte.
Para outros premiados, quem sabe, essa contextualização seria desnecessária, mas no caso de Kéré a sua trajetória profissional está intimamente ligada ao seu lugar de origem, ao seu mundo. E ele foi até o ‘outro mundo’ para poder mudar a sua aldeia, um belo e honesto exemplo de sustentabilidade e da máxima ecologista de ‘pensar globalmente, agir localmente’. Em sua frase, “precisamos de soluções locais para resolver os problemas globais”.
Repassando sua biografia, assistindo suas entrevistas, estudando sua obra, o que vemos é uma síntese do melhor dos dois mundos aos quais ele pertence. A formação técnica altamente qualificada, o conhecimento científico e as oportunidades globais contrastam mas complementam a humanidade, o respeito à natureza, as pequenas escalas, o senso de comunidade, a honestidade de propósitos e a singeleza do contato humano.
O simples que não é simplório. Kéré nos prova assim que outro mundo é possível, ou que o melhor de cada mundo é compatível e desejável, e que ”o melhor conhecimento e tecnologia do mundo deve estar a serviço de melhorar a vida das pessoas na minha aldeia, de todo o mundo”.
Tiago Holzmann da Silva
Arquiteto e Urbanista
Presidente do CAU/RS