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Muito tem sido discutido sobre a questão do Plano Diretor de Porto Alegre nos últimos meses. A frequência do tema tem justificativa: entre 2017 e 2019, a prefeitura deve encaminhar à Câmara Municipal um projeto de lei revendo as diretrizes estabelecidas pelo documento. Em 2001 ficou estabelecido que essa revisão aconteceria a cada dez anos com o objetivo de atualizar as prioridades dos investimentos públicos na cidade conforme as transformações urbanas e mudanças de necessidades da população, que inevitavelmente acontecem ao longo do tempo.
Considerando a função social dos arquitetos e urbanistas – trabalhar em prol de uma cidade melhor, mais eficiente e acolhedora para toda a população -, o momento de revisão do Plano Diretor é oportunidade para integrar a discussão sobre o espaço urbano a diversas áreas do conhecimento, agregando interesses sociais, econômicos, estruturais e culturais que coexistem na cidade.
Em junho, o Instituto dos Arquitetos do Brasil no Rio Grande do Sul (IAB RS) deu início ao ciclo de debates sobre Plano Diretor, com uma palestra apresentada pelas arquitetas Célia Ferraz de Souza e Maria Soares de Almeida. O tema foi o legado dos Planos Diretores, tendo como marcos os anos de 1914 e 1959.
O Plano Geral de Melhoramentos de Porto Alegre (1914)
Em 1914, ainda não havia um Plano Diretor formalizado em Porto Alegre. Na época, houve a elaboração do Plano Geral de Melhoramentos de Porto Alegre pelo engenheiro-arquiteto João Moreira Maciel. Essa foi a primeira iniciativa que propôs medidas gerais de melhoramento da cidade de uma forma mais ampla, com um entendimento do que hoje é chamado de urbanismo – termo que não era usado na época.
Célia Ferraz de Souza, arquiteta e urbanista e conselheira do CAU/RS, é autora do livro “Plano Geral de Melhoramentos de Porto Alegre: o plano que orientou a modernização da cidade”, que surgiu a partir de sua tese de doutorado. Após a proclamação da República, o Rio Grande do Sul teve grande aumento populacional em função da imigração, que se destinou inclusive para a capital do Estado. Os problemas causados pelo crescimento informal da cidade se agravaram. Insuficiente saneamento básico, vias desalinhadas e estreitas, além da falta de planejamento para uso do porto estavam entre algumas das questões que precisavam ser resolvidas.
“Eram necessárias avenidas e instalação das redes de infraestrutura. A canalização e a distribuição de água e a rede de esgoto estavam por serem feitas. O que existia era absolutamente insuficiente. Faltavam também redes modernas de eletricidade, gás, telefone. Era fundamental ter rede de esgoto. As ruas recebiam o esgoto pluvial, pelo centro do leito viário que deixava a cidade muito suja, e o esgoto cloacal era despejado por meio de cubos no Guaíba ou no Dilúvio”, explica Célia.
O plano teve inspiração nas concepções de belo e útil pregadas nas escolas de arquitetura em Paris e na grande reforma da capital francesa que aconteceu entre 1852 e 1900. O tripé aplicado lá, composto pelo saneamento, circulação e embelezamento, foi também mentor das ideias básicas do Plano de Melhoramentos de 1914 em Porto Alegre.
O plano de 1914, de acordo com Célia Ferraz, deixa legado até hoje em roteiros bastante comuns na rotina dos porto-alegrenses. “Ao se circular por Porto Alegre é difícil não se passar por alguma via ou espaço definido pelo plano. Quem vem da zona sul, tanto pela Borges de Medeiros, quanto pela Edvaldo Pereira Paiva, e atravessa a Ipiranga, já está atravessando três momentos do Plano de Melhoramentos. Se vai para o centro, atravessa o Viaduto dos Açorianos. A Perimetral que passa por baixo faz parte, também, do plano. Se for para o Parque Farroupilha, temos outro espaço incorporado ao plano, embora com outro projeto de parque. Ao passar pela Avenida João Pessoa, ao pegar a Rua André da Rocha, passa-se por uma área de grande modificação proposta pelo plano. Não se esquecendo das vias estruturais propostas, como a Salgado Filho, a Alberto Bins, a Vasco da Gama e a Farrapos, que conduzem ao centro, além da área portuária, da Avenida Mauá até a Siqueira Campos”, aponta Célia.
O Plano de Melhoramentos inspirou os planos diretores que se seguiram. As ideias ali colocadas, especialmente quanto à disposição das vias da cidade, orientaram as diretrizes pensadas anos mais tarde. A Avenida Edvaldo Pereira Paiva, via prevista no plano, só foi aberta na década de 1990. O exemplo leva a outra questão levantada por Célia: as dificuldades de implantação de planos diretores se perpetuam. “Tirando a nova área portuária, o plano só começou a deslanchar a partir da década de 30. E, de certa forma, se completa na década de 1990, mas dentro de outro plano. Suas propostas eram claras e pertinentes, então permaneceram e foram sendo adaptadas aos novos planos. Essa demora na implantação mostra a grande dificuldade que existe na viabilização de um plano”.
Célia Ferraz considera que diversas diretrizes do Plano Geral de Melhoramentos de 1914 poderiam ser seguidas, especialmente no que diz respeito ao caráter integrado dos projetos de Plano Diretor. “O planejamento não se apresenta mais com a visão de conjunto. São projetos pontuais sem visão geral. O plano de 1914 não abordava todas as áreas urbanas, mas sim o primeiro Distrito e algumas outras áreas, onde a maioria das pessoas morava. Apesar disso, o plano pensava nas acessibilidades, como chegar ao centro pelo norte, pelo sul e pelas águas. Pensava ainda na infraestrutura e no embelezamento, entendido como parques e jardins, além da ordenação e alinhamento das ruas”, exemplifica.
Para Célia, não se pode perder de vista a articulação entre os projetos de cada parte da cidade, para evitar planos desconexos que pensem em soluções pontuais, mas que não funcionam na coletividade urbana.
O primeiro Plano Diretor da capital gaúcha (1959)
O ano de 1959 ficou marcado pelo primeiro Plano Diretor da cidade de Porto Alegre. Edvaldo Pereira Paiva e Demétrio Ribeiro foram os responsáveis por organizar a planificação da cidade, pensando as funções urbanas de habitação, trabalho, lazer e circulação a partir de um esquema de zoneamento de regiões.
Para a arquiteta e urbanista Maria Soares de Almeida, o principal objetivo do plano foi o controle de densidades e da ocupação de terrenos, considerando taxas de ocupação das regiões. “Os arquitetos queriam um controle bem maior das densidades, porque eles associavam a densidade por bairro ou por zona à definição das estruturas necessárias. Sabendo as densidades se poderia prever as infraestruturas”, afirma Maria.
Além do zoneamento de bairros, outros ganhos do primeiro Plano Diretor de Porto Alegre foram as três perimetrais da cidade, planejadas na época. Também o Parque Marinha do Brasil, uma das áreas verdes mais importantes da cidade, foi pensado no período. De forma geral, houve pela primeira vez uma preocupação com o urbanismo em toda sua abrangência.
Questões para a revisão do Plano Diretor (2017)
O urbanismo, pensado sozinho, mexe com as pessoas, mas não transforma a sociedade. É o que pontua Célia Ferraz, destacando a importância de se pensar diretrizes urbanas que funcionem para a sociedade existente, e não para uma sociedade idealizada ou futura. Ao mesmo tempo, o plano diretor deve ter o potencial de atravessar o tempo, fazendo sentido no futuro, mas com flexibilidade o suficiente para ser ajustado conforme as transformações sociais. “Ele deve conter um olhar interdisciplinar para que possa oferecer um atendimento às necessidades sociais, econômicas, politicas e locacionais da sociedade. Desse olhar abrangente vão sair propostas de mudanças no plano físico espacial. E, neste ponto, entra a participação da população”, aponta.
Maria Soares de Almeida compartilha da ideia de interdisciplinaridade na visão do arquiteto. “Os arquitetos são fundamentais nesse processo e tiveram, em 1959, a predominância na elaboração do plano. Depois, a evolução disso levou à ideia de planejamento integrado, com outras disciplinas importantes, trazendo economistas, geógrafos, sociólogos para o processo. Ampliou-se toda a visão de que o planejamento deveria ser uma função de toda a gama de conhecimento localizado nas áreas específicas. Isso foi um avanço que os anos 60 já preconizavam, se consolidou nos anos 70 e até hoje é assim. Outros saberes e olhares foram incorporados e isso trouxe um conhecimento muito mais amplo da cidade, dos problemas e o encaminhamento de soluções mais eficientes”, considera a arquiteta e urbanista.
2 respostas
Quem escreveu esse artigo?
Oi, Renata! O texto é de produção da Assessoria de Comunicação do CAU/RS.