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Deslocar-se, em boa parte das cidades brasileiras, pode levar tempo. Este fato está relacionado não apenas com longas distâncias entre os pontos nos grandes municípios, mas também com os congestionamentos causados pelo número de veículos motorizados circulando e pela infraestrutura urbana que ainda deixa a desejar.
Uma pesquisa Confederação Nacional da Indústria, realizada em 2015, aponta que 31% dos brasileiros gastam em média uma hora em deslocamento no trânsito diariamente. Quando se trata de metrópoles como Rio de Janeiro e São Paulo, o tempo gasto para ir e voltar do trabalho chega a mais de duas horas. E essa parece ser a tendência. Entre os anos de 2000 e 2010, a frota de veículos no Brasil passou de 29 milhões para mais de 64 milhões, um aumento de 119%, conforme dados do Departamento Nacional de Trânsito.
Frente a essa realidade, pessoas e instituições têm trabalhado em prol de políticas e discussões na tentativa de reverter – ou ao menos melhorar – o cenário. O Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP, sigla em inglês para Institute for Transportation and Develompent Policy) é uma destas iniciativas. Fundada em 1985 nos Estados Unidos, a organização chegou ao Brasil em 2009, guiada por oito princípios básicos: reorganizar regiões para encurtar viagens; adensar as áreas ao redor do transporte coletivo; conectar as regiões da cidade de forma estratégica; usar o transporte público; estimular o uso misto do solo para ter um cenário urbano mais vibrante; priorizar o uso da bicicleta; promover mudanças; estimular pessoas a circular a pé.
Revitalização das ruas
Para Clarisse Linke, diretora executiva do ITDP no Brasil, o primeiro estigma que precisa ser modificado na sociedade é a ideia das ruas como lugares de passagem e não de convivência. “Em sua origem, a rua não era apenas uma passagem ou uma simples via de acesso a outros locais e sim o próprio lugar. Os espaços públicos eram espaços de convivência, eram lugares para se estar, passar o tempo e interagir com outras pessoas”, afirma Clarisse.
Mas para esta mudança acontecer, é necessário pensar numa malha urbana que favoreça a circulação das pessoas por estes ambientes. Elementos como segurança, acessibilidade e a presença de atrações culturais e educativas levam a população para as ruas, e promovem a interação e a troca. A cultura do uso do carro, conforme Clarisse Linke, vai em sentido contrário a esta mudança. “O modelo de mobilidade urbana preponderante nas nossas cidades é formado por uma rede hierárquica de vias definidas para e a partir dos veículos motorizados particulares. O resultado desse modelo é que temos hoje cidades partidas, vazios urbanos e lugares onde as pessoas não são bem-vindas”, ressalta.
Cidades para todos
Ao pensar em transformações necessárias na cidade em que vivemos, ou mesmo no paradigma de cidade que carregamos culturalmente, é importante ter em mente valores que indiquem um caminho a se seguir. Afinal de contas, trata-se de uma problemática muito complexa que envolve inúmeras variáveis e diversos setores sociais interessados. Como podemos pensar em uma cidade que favoreça todos? O que é uma cidade para todos?
Clarisse Linke defende o planejamento urbano com um olhar voltado às populações mais vulneráveis: crianças, idosos, mulheres e pessoas com limitações físicas de deslocamento. “Precisamos sonhar e vislumbrar um novo paradigma de mobilidade urbana que enxergue a cidade em suas diferentes escalas, que proteja pedestres, dando-os mais opções de deslocamento, não menos. Que ouça seus cidadãos, independentemente de idade, classe social e bairro de residência”, afirma Clarisse.
Para a diretora executiva do ITDP no Brasil, os debates sobre segregação social, desigualdade de gênero e discriminação racial devem estar presentes quando se discute urbanismo. O desenho das cidades deve ser pensado de maneira a integrar a sociedade, e não separá-la ainda mais. Um modelo que coloca as classes mais abastadas na região central e a população de baixa renda nas periferias vai contra esta proposta de integração, segundo Clarisse Linke. Além disso, as mulheres também carregam necessidades diferentes dos homens quando se pensa na circulação pelas ruas. “No ITDP, temos buscado compreender com maior clareza as diferenças dos padrões de circulação entre homens e mulheres, pois acreditamos que as oportunidades urbanas devem ser acessíveis a todos e todas. Incluir as discussões de gênero no âmbito da mobilidade urbana se torna cada vez mais necessário e isso é algo que podemos fazer concretamente agora para construir cidades melhores e mais vibrantes”, destaca.
Como a tecnologia pode nos ajudar?
Com os avanços tecnológicos da última década, mesmo dificuldades cotidianas com relação à mobilidade urbana têm sido facilitadas por inovações tecnológicas. Conforme a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), em 2010, o Brasil alcançou a marca de um celular por habitante. Neste cenário, aplicativos que oferecem serviços com informações sobre itinerários e horários de ônibus, acesso a sistemas de bicicletas compartilhadas, plataformas colaborativas para identificar pontos de violência na cidade, serviços para registro de reclamações junto ao poder público, entre outras iniciativas, vêm surgindo em volume cada vez maior.
Clarisse acredita que a tecnologia influencia positivamente o envolvimento da população com a cidade e com políticas para a cidade. “Na medida que as reclamações são encaminhadas e acompanhadas diretamente do celular, os aplicativos se tornam, cada vez mais, ferramentas que exercem um papel fundamental na geração de estatísticas para auxiliar o planejamento de políticas públicas”, explica.
É importante ressaltar, entretanto, que sem uma mudança cultural na visão que as pessoas têm sobre padrões de mobilidade urbana, os recursos tecnológicos que surgem não resolvem a questão. “O caos na mobilidade urbana nas cidades brasileiras é fruto da combinação entre políticas de uso do solo mal sucedidas, circulação priorizada para o transporte individual e oferta de transporte público de baixa qualidade. Isso tudo agravado pela gradativa desvalorização do espaço para os pedestres e ciclistas, tratados como invisíveis”, explica. Das perspectiva de políticas públicas, é importante que o pedestre seja visto como prioritário na pirâmide da mobilidade, já que é a parte mais frágil das relações de trânsito e circulação. “É preciso centrar o desenho urbano nas pessoas, já que são elas que caminham, acessam serviços, oportunidades, educação e cultura”, conclui Clarisse.