Artigo

O Bom Selvagem, por Flávio Kiefer

Neoliberais defendem que o mercado pode resolver o problema da moradia popular por conta própria. Basta acabar com leis regulatórias da atividade da construção.
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Artigo originalmente publicado no portal Sler: sler.com.br

Quando ouço entusiasmados defensores do livre mercado, lembro a história do bom selvagem atribuída a Rousseau. Aquela que consagrou a ideia de que o ser humano originário, vivendo livremente no ambiente natural, é essencialmente bom. Impossível saber o quanto isso tem de verdade, desejo ou fantasia. Pesquisas recentes apontam para a última hipótese. Mas fato inquestionável, segundo David Graeber e David Wengrow em O Despertar de Tudo, é que foi a invenção da propriedade privada que abriu caminho para a acumulação de poder e capital. Faz sentido.

A separação entre os que passaram a ter o que defender e os que continuaram sem é que fez com que nos tornássemos o que somos hoje, os maiores inimigos de nós mesmos. As ideias de Rousseau tinham forte parentesco com as apresentadas pela bíblia. Não fosse aquela famosa maçã, ainda viveríamos nos jardins das delícias. Não é de se admirar, então, que Rousseau encontra terra fértil para sua versão da história.

De qualquer forma, é certo que a divisão entre possuidores e não-possuidores passou a exigir regras, controle, leis e o surgimento de instituições, como a Igreja e o Estado, para vigiar e limitar instintos inconformados. A contravenção e o pecado passaram a ocupar lugar de honra na história da humanidade. Ironia das ironias, muitos hoje ainda chamam esses instintos humanos de selvagens. Os neoliberais, que veneram a propriedade privada de forma apaixonada, claro, preferem a ideia do pecado original para explicar nossa expiação terrena.

Propriedade privada é assunto vencido, não cabe discutir sua pertinência, mas é importante pensar sobre sua extensão, seus limites e sua adequação social. Ela faz parte do nosso modo de ser e tem, por sorte, no Brasil, sua função social reconhecida na Constituição. O que me incomoda é essa insistência dos neoliberais em dizer que seria possível prescindir do Estado como organizador da vida social e econômica no estágio atual da civilização. Que seria possível voltar a esse pretenso mundo onde cada um cuidava de si e, teoricamente, isso seria bom para todos.

Curioso é que os próprios defensores da eliminação do estado não o querem eliminar de todo. Querem que ele fique cuidando da segurança e educação dos indivíduos. Fica claro que nem eles acreditam ser possível voltarmos à fantasia do bom selvagem. É preciso reprimir e educar os indivíduos para que aceitem a liberdade de quem a pode ter.

Esquecem que o estado é consequência e não causa da nossa falta de liberdade. Foi o mundo pós-invenção da propriedade privada que gerou a insegurança. A partir da posse de um ser humano pelo outro, seja transformando humanos literalmente em mercadoria, na forma da escravização, ou, de uma maneira mais sutil, através da compra de parte do tempo de sua vida, seja através da servidão, de contratos de salários ou venda livre de serviços, é que o medo passou a fazer parte da vida social. Para quem não aceita pacificamente relações interpessoais como essas é preciso lei e punição, seja ela na forma de cruz, fogueira, guilhotina, hospícios ou cadeias. O chamado Estado de Bem-Estar Social é a miragem atenuadora que os governos prometem como a cenoura que faz o burro andar. Mas até essa cenoura alguns querem tirar.

Lembrei de tudo isso ao ler a entrevista do urbanista Alain Bertaud na Zero Hora do dia 8 de abril. Ele diz textualmente “a solução para a falta de moradia deve vir do mercado”. E por que o mercado não o faz? Porque há leis impondo regras para as construções, responde ele. Essas condições apontadas são limitações ao que vai ser construído. São do tipo que garantem habitabilidade, higiene e dignidade humana. E ele parece não saber que a terra urbana vale pelo que se pode construir em cima. Ela não tem valor absoluto. Liberar índices construtivos é inflacionar o preço dos terrenos.

Bertaud reconhece que essas pessoas, que nem o mercado formal ou o estado atendem, moram em algum lugar. Moram em vilas irregulares onde não há lei, não há estado. São redutos onde impera, vejam só, a lei da oferta e procura exatamente como pregam os neoliberais. No Rio de Janeiro fazem edifícios sem fiscalização, sem responsáveis técnicos, sem nenhum tipo de controle legal. De vez em quando alguns desmoronam, morre gente, mas assim é a vida… o mercado vai aprendendo… (contém ironia, lógico)

O curioso é que esse livre mercado não é usado como ideal, exemplo real do que poderia ser uma sociedade de livre mercado. Estou fazendo uma argumentação retórica, porque sei, claro, que nem ali o mercado é livre. Também lá reina a propriedade privada, o capital, o tráfico ou milícia deitando a lei. Fica claro que autoridade não se perde no vácuo, logo uma nova ocupa seu lugar.

O que todos esperamos, isso sim, é que o Estado chegue lá. Defender a eliminação do Estado é utopia pueril. Melhor é se dedicar a debater como viabilizar o Estado para que ele cumpra suas funções – entre elas, a de prover habitação decente para quem não tem como acessá-las. Um direito de todos.

Flávio Kiefer – Arquiteto e professor

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