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O “feirão” e o desenvolvimento das cidades

Palácio Gustavo Capanema. Foto: Oscar Liberal | Iphan

Confira a seguir o artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo de autoria das arquitetas e urbanistas Nadia Somekh, presidente do CAU Brasil e professora emérita da FAU-Mackenzie, e Maria Elisa Baptista, presidente do IAB Nacional e professora da PUCMinas. No texto, elas abordam a venda, no Rio de Janeiro, de imóveis pertencentes à União. Muitos são prédios tombados, considerados “bens da nação”.

 

O “feirão” e o desenvolvimento das cidades

O anúncio da venda em “feirão de imóveis” de mais de 2 mil imóveis da União no Rio de Janeiro é o anúncio de um desastre. Se é alto o custo urbanístico de imóveis vazios − cascas sem alma que pioram as já precárias condições ambientais e paisagísticas de nossas cidades e não cumprem a função social exigida na Constituição Brasileira − mais alto ainda será o custo de sua venda atabalhoada, provavelmente na bacia das almas, sem atender a planos articulados de recuperação e melhoria do centro do Rio e potenciais outras cidades. A malfadada ideia de um “feirão” apoia-se na Lei nº 14.011/2020 que permite que todos os imóveis públicos federais recebam uma PAI (Proposta de Aquisição de Imóveis) de qualquer cidadão interessado na compra.

É preciso dizer que, entre esses imóveis, há muitos tombados pelo Patrimônio, identificados como bens da Nação cuja guarda não pode ser alienada. A lei da PAI passa de forma inconstitucional por cima do Decreto Lei nº 25/937, que especifica que um bem público tombado não pode ser alienado, apenas transferido para outra instituição pública.

Um deles é o Palácio Gustavo Capanema (originalmente Palácio da Cultura), ícone da Arquitetura Moderna do Brasil, bem tombado pelo Iphan e indicado para entrar na lista do Patrimônio Mundial Cultural da UNESCO. Após forte pressão popular e internacional, o edifício teria sido retirado do “feirão”, não se descartando, porém, a venda de alguns andares. O edifício – construído nos anos 30 e 40 para sediar o então Ministério da Educação e Saúde – é símbolo do sonho brasileiro de modernidade. Ele une arquitetura, paisagismo e artes no projeto excepcional de Lucio Costa e equipe, na qual estava Oscar Niemeyer, com consultoria de Le Corbusier, e nos jardins de Burle Marx, azulejaria de Cândido Portinari e esculturas de Bruno Giorgi e outros artistas, abrigando acervos de valor inestimável.

No caso do “Palácio Capanema” o lance mínimo não chegava a um terço dos R$ 100 milhões investidos desde 2014 no seu primoroso restauro. Um paradoxo, já que o objetivo da iniciativa é “fazer caixa” para o governo – aliás sem especificar onde o dinheiro seria empregado.

Somos a favor de uma política de Estado que oriente a ocupação desses edifícios vazios, reabilitando-os para usos necessários e urgentes, para que cumpram sua função social, em articulação com programas de recuperação dos centros, contribuindo para a revigoração da economia não apenas do Rio mas de outras cidades brasileiras. Os imóveis sob a guarda do Serviço do Patrimônio da União representam uma chance imperdível de melhorar nossas cidades, principalmente com moradia e equipamentos urbanos (educação, saúde, cultura!). Vendê-los, como previsto, em um “feirão de imóveis”, multiplica o salve-se quem puder que hoje caracteriza nossas cidades desenhadas e geridas por um voraz mercado imobiliário.

O patrimônio ambiental e cultural de um país é a riqueza que nos permitirá, mais que projetar nosso futuro, vivê-lo.

Palácio Gustavo Capanema. Foto: Oscar Liberal | Iphan
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