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Na luta pela qualidade do ensino e da formação dos profissionais, o Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU/RS) sempre entendeu o Ensino a Distância (EAD) como uma ferramenta, e não como modalidade.
Recentemente, por meio da Comissão de Ensino e Formação (CEF – CAU/RS), o Conselho emitiu uma nota posicionando-se contra a Portaria nº 343/2020 do Ministério da Educação (MEC), que “dispõe sobre a substituição das aulas presenciais por aulas em meios digitais enquanto durar a situação da pandemia do Novo Coronavírus – COVID 19”.
Agora, pesquisadores e especialistas na área do Ensino a Distância também compartilham sua opinião, ao alertar sobre os riscos da adoção improvisada desta ferramenta, fortalecendo a posição que o CAU/RS mantém há bastante tempo. Um deles é o professor Dr. Hélder Gusso, do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Leia abaixo o texto na íntegra:
Minhas considerações sobre a possível adaptação do ensino presencial ao ensino a distância (EAD) nas universidades
Quem me conhece sabe o quanto sou entusiasta por tecnologias de ensino. Em minhas disciplinas presenciais utilizo dezenas de recursos online, já programei disciplinas em EaD muito bem avaliadas, tenho dados para demonstrar a efetividade de formação gerencial que coordenei em um órgão público em formato híbrido (presencial + online), e meu principal projeto de pesquisa e extensão na UFSC é justamente o desenvolvimento de uma plataforma de educação científica online (que lançaríamos em abril/20, mas que demorará mais em função da pandemia). Adicionalmente, meu doutorado foi em programação de ensino e boa parte das pesquisas científicas que tenho desenvolvido versam sobre educação e tecnologias. Tudo isso para dizer que minha opinião tem alguma base em experiência empírica pregressa e em dados. Vamos, agora, ao que importa.
A UNESCO estima que mais da metade dos estudantes no mundo estão com aulas suspensas neste momento. E isso só vai aumentar, conforme a pandemia ganha força em todo o planeta. No Brasil, em especial no ensino superior, o Ministério da Educação emitiu a portaria 343 de 17 de março de 2020, que autoriza as instituições de ensino superior a adaptar seus cursos presenciais ao formato EaD durante a pandemia.
Inicialmente, ainda tentando lidar com o início da quarentena domiciliar, estava avaliando a adaptação das disciplinas para formato online como uma espécie de “redução de danos” aos estudantes. Um meio para garantir o semestre letivo, da forma como seria possível. Hoje, avaliando com mais cuidado, CONSIDERO INADEQUADA A TENTATIVA DE ADAPTAÇÃO DAS DISCIPLINAS DE CURSOS PRESENCIAIS AO FORMATO ONLINE, BEM COMO CONSIDERO QUE AS ATIVIDADES NOS CURSOS A DISTÂNCIA TAMBÉM DEVEM SER INTERROMPIDAS NESTE MOMENTO.
Razões para isso:
1. Embora haja vasta literatura indicando que ensino a distância é tão efetivo quanto o presencial, nem tudo pode ser ensinado online (ao menos não ainda com a tecnologia que temos). Há diversas disciplinas em cursos presenciais que dependem, necessariamente, de atividades presenciais.
2. Para que uma disciplina online seja efetiva (ensine!), não bastará que professores façam uma adaptação na disciplina. Ensinar não é ficar falando pra câmera e aprender não é assistir professor. Uma disciplina não pode ser reduzida a um vídeo no YouTube ou a disponibilização de livros e artigos.
3. Elaborar atividades de ensino online efetivas vai requerer MUITO trabalho dos professores e uma carga horária que nenhum deles terá no momento.
4. Para piorar, professores não foram qualificados para lidar com os recursos e tecnologias de ensino online. Por mais que universidades disponibilizem LMS (moodle, blackboard etc.), quantos efetivamente sabem programar atividades de ensino e não apenas dispor materiais?
5. Não há garantia de que os recursos necessários para viabilizar o ensino online estejam disponíveis nas residências dos estudantes (computadores, conexão de internet….). Os dados socioeconômicos dos estudantes das universidades federais do país indicam que a maior parte deles será excluída do processo por falta de recursos.
6. Não há garantia nem mesmo de que esses recursos estejam disponíveis nas residências dos professores.
7. Não é conhecida a realidade da rotina nas residências dos estudantes e professores para imaginar a viabilidade de manutenção do calendário acadêmico, que demandará a realização de atividades e participação online em um horizonte de tempo que pegará justamente o ápice da pandemia no Brasil (abril-junho).
8. Com o aumento da quantidade de casos de coronavírus, em pouco tempo todos terão um familiar, amigo ou vizinho que precisará de ajuda. As rotinas nas casas tenderão a não ser tão tranquila quanto talvez esteja sendo no momento para alguns (para outros já está muito complicado…).
9. Há agravantes socioeconômicos que irão mudar as prioridades de muitos estudantes, e também professores, nas próximas semanas. Famílias sem renda, aumento do tempo em confinamento e diversas outras circunstancialidades de um período atípico de crise que nunca vivemos. Quem irá atentar às disciplinas? E em que condições?
10. Por fim, professores universitários, doutorandos, mestrandos e alunos de iniciação científica constituem a força de trabalho da Ciência em nosso país. Professores/cientistas e pós-graduados de diversas áreas já estão mobilizados, e outros estão começando a se mobilizar, para direcionar todo o esforço científico do país em relação às necessidades sociais deste momento. Não se trata apenas do microbiólogo que está buscando a cura ou vacina. Falo também do psicólogo que entende o que acontece com as pessoas em confinamento e que passa a fornecer diretrizes para orientar pessoas para uma vida mais saudável em casa. Do antropólogo que ajuda a planejar políticas públicas para reestabelecer vida em comunidade após período de medo de aproximação. Do educador físico que projeta meios de incentivo à prática de atividade física dentro das casas. Do filósofo que ensina de uma nova maneira meios para a população ser menos vítima de fake news em período crítico. E de todas as demais profissões, fundamentadas na ciências que tem muito a oferecer neste momento.
NÃO É HORA DE VOLTARMOS PARA AS DISCIPLINAS CURRICULARES DE MODO IMPROVISADO. A prioridade pode ser o fortalecimento de agendas de pesquisa mais coerentes com as necessidades do momento. Do semestre acadêmico cuidaremos quando tudo isso passar. Já lidamos com longas interrupções de semestres letivos no passado e sabemos que damos conta de fazê-lo.
Cuidem-se.
Professor Dr. Hélder Gusso
Sobre o autor: Hélder Lima Gusso é professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Ministra disciplinas relacionadas ao campo da Psicologia Organizacional e do Trabalho e de Análise do Comportamento. Doutor e Mestre em Psicologia na Universidade Federal de Santa Catarina. Especialista em Administração pela FAE (2005). Graduado em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná (2005). Analista do Comportamento acreditado pela ABPMC (054/2015). Conselheiro e membro da comissão de acreditação em Análise do Comportamento da ABPMC (2017-2018).
Saiba mais
Confira outros textos recentemente publicados que abordam os riscos do ensino 100% a distância:
- Leia a nota emitida pela Comissão de Ensino e Formação e fique por dentro de outras iniciativas do CAU/RS em relação ao EAD: caurs.gov.br/tag/ead
- Leia a nota emitida pela Universidade Federal de Pernambuco sobre a suspensão de atividades acadêmicas nas modalidades presencial e a distância.
- EDUCAUSE Review (texto em inglês)
- Le Monde Diplomatique – Brasil